Wenceslau
Alonso O. Junior - 1992
Para começar, como manda o
rigor em uma exposição que se preze, vamos delimitar a abrangência deste
escrito: ele tratará do brega nas
canções de compositores brasileiros.
O brega é quase sempre um
bolero bastante piorado, tanto na melodia quanto na letra. Quem disse isso, e
eu concordo como conceito preliminar, foi o Edelmiro em uma de nossas aulas sobre o conceito de beleza em São Tomas de Aquino. Não me perguntem
como fomos de São Tomas ao brega, que eu não recordo. Sei que fomos, e sei que
é possível ir.
Eu sou contra o brega
sempre que estou lúcido. Se faço alguma leve concessão a ele em certas
circunstancias, não é propriamente no fascínio estético do brega que a
explicação da concessão deve ser procurada. Com certeza ela se encontra
alhures. Em geral, quando alguém que não coleciona discos de brega aparece
dançando o brega com cara de êxtase numa festa qualquer, devemos prestar
atenção na parceira do dançarino, pois a razão do êxtase possivelmente será
ela.
Eu sou contra o brega por
motivos éticos e estéticos. Comecemos pelos motivos estéticos.
O poeta Ezra Pound em seu
livro “ABC da literatura” diz, em
certo momento, que há seis tipos de artistas (ele fala mais propriamente de
escritores). Vejamos os três primeiros:
a)
Os inventores: homens que descobriram um novo
processo.
b)
Os mestres: homens que combinaram um certo
numero de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores.
c)
Os diluidores: homens que vieram depois das duas
primeiras espécies e não foram capazes de realizar bem o trabalho “artístico”.
Se introduzirmos no
terceiro tipo algumas mudanças conceituais e produzirmos a seguinte definição: “homens que vieram depois das duas primeiras
espécies e realizaram péssima e venalmente o trabalho artístico”, teremos o
perfil do compositor de brega.
Eu acabei de dizer que os
compositores de brega fazem trabalho artístico, mas até isso é duvidoso, porque
a criação é essencial na caracterização da obra de arte, e o que ocorre no
brega é uma adaptação de certas sonoridades e palavras dentro de um limite
muito estreito, e não propriamente criação.
Do ponto de vista
estético, a história do brega entre 1930 e hoje é a história do seu
desmascaramento, quer no terreno dos arranjos e das melodias, quer no terreno
das letras das canções.
Com o passar dos anos, os
arranjos simplificaram-se, sob a influencia das formações dos grupos de rock,
houve uma economia de instrumentação, e os violinos cederam lugar às guitarras,
o que retirou do brega o álibi da solenidade e deu-lhe a possibilidade da
estridência vulgar. Em outras palavras,
o abandono dos arranjos com a orquestra de sopros e cordas pôs a nu com mais
clareza a penúria estética das melodias.
Para compreender o que
aconteceu com as letras das canções, leia-se “criação” de Vicente Celestino, intitulada “Coração
Materno”, regravada ironicamente por Caetano Veloso em 1968, no disco
“Tropicália”.
“Disse
um campônio á sua amada,
Minha
idolatrada peça o que quiser.
Por
ti vou matar, vou roubar,
Embora
tristeza me causes, mulher.”
Leia-se
mais este trecho de Leandro e Leonardo:
“Entre
tapas e beijos
É
ódio é desejo,
Paixão
ou ternura.
Um
casal que se ama
Até
mesmo na cama
Provoca
loucura.”
E
ainda este de Lindomar Castilho,
compositor brega que se transferiu da ficção para a realidade, matando
bregamente a própria esposa por julgar-se traído:
“Eu
hoje quebro esta mesa,
Se
o meu amor não chegar,
Também
não pago a despesa,
Nem
saio deste lugar”.
No
termo especifico das letras, como é possível notar nos três pequenos exemplos
anteriores, a dicção parnasiana de Vicente celestino – que usa a ordem frasal
indireta (hipérbato), o vocativo (apóstrofe): -“Embora tristeza me causes (ó) mulher” e vocábulos de procedência
culta: “campônio”, “idólatra”- foi
abandonada, e o álibi da pomposidade cedeu lugar a uma linguagem mais
cotidiana. É importante notar que este fato também ocorreu na grande poesia,
basta comparar a dicção de Olavo Bilac com a de Manuel Bandeira para perceber o
fenômeno. Porém, no caso da grande poesia, a mudança processou-se por causa de
uma preocupação vanguardista esteticamente defensável, enquanto que, no brega,
a mudança fundamenta-se em uma intenção de caráter venal, pois pretende-se aí aproximar mais as letras do real
universo do consumidor, um universo intelectualmente pobre, produzido
deliberadamente pelos meios de comunicação de massa, no sentido de mantê-lo (o
consumidor) afastado das produções musicais mais criticas e instigadoras.
Mesmo
na temática que, ao longo da historia do brega se resume às dores de cotovelo,
sofrimentos de cornos (mansos e sanguinários) e desilusões amorosas de toda
espécie, a mudança de uma abordagem mais recatada
para uma mais despudorada, não
significa avanço na discussão dos hábitos morais. O tom despudorado das letras
de hoje é ainda índice de venalidade. A lascívia
das letras parece funcionar como um estimulante da sexualidade, que é uma forma
de lazer muito estimada nas camadas populares, por ser barato, já que depende
apenas do uso do corpo. Enfim, letras picantes vendem mais.
Como
se vê, de Vicente Celestino para cá o lugar desmascarou-se, percorrendo uma
trajetória que desemboca no acanalhamento e no cinismo das produções atuais.
Dizer
o lugar desonroso que o brega ocupa na hierarquia do trabalho artístico, não o
explica suficientemente, entretanto.
A
distância que existe entre Chico Buarque de Holanda (um mestre), ou Schoenberg (um inventor) e, queiram
desculpar, Carlos Santos ou Alípio Martins (diluidores de 5ª categoria), não se
mede apenas esteticamente, mas também eticamente.
Vamos ao ético.
Dizem
que o brega é cultura, e é. De acordo com o conceito antropológico, cultura é
tudo aquilo que o homem produz. Então, o brega é cultura.
Entretanto,
o conceito antropológico não o legitima humanisticamente, pois há cultura e há
cultura.
Existe
a cultura popular (o folclore), digna e representativa do modo de ser de certos
grupos das camadas populares.
Há
a cultura de vanguarda (onde estão os inventores). Há a cultura erudita (onde
estão os mestres e as pessoas que têm acesso ao conhecimento acadêmico) e há,
desculpem novamente, a cultura de massa (aquela produzida e orquestrada pelos
meios de comunicação de massa, basicamente rádio e televisão, onde está o
brega).
Ora,
a cultura de massa, como já demonstrou a escola sociológica de Frankfurt –
hoje, sintomaticamente fora de moda – cumpre um papel ideológico, isto é,
impede as camadas populares de ter acesso ao conhecimento das verdadeiras
causas produtoras das injustiças sociais.
Enquanto
nos preocupamos com as desventuras amorosas de Chitãozinho e Xororó e delas
sorrimos com condescendência,
ou até com elas nos comovemos, a estrutura injusta da sociedade permanece pouco
ou nada discutida e sem chances de ser alterada. Não é a toa que a Rede Globo
está investindo tão fortemente no brega.
Além
do aspecto ideológico, o brega ainda merece outro reparo ético: ele é feito
descaradamente para vender.
O
compositor de brega não é um artista no sentido estético. Ele é um comerciante
desonesto de quinta categoria, pois vende um produto que sabe que é ruim. Um
produto que ele próprio acanalha, numa atitude de desrespeito ao público que
ingenuamente o prestigia.
O
lema deste tipo de compositor é: “quanto
mais pior, mais melhor”, isto é, quanto mais esteticamente ruim for a
canção, melhor será para vendê-la.
Vocês
certamente já viram um compositor de brega falar sobre o seu trabalho: ou ele
assume um ar populista, defendendo “o gosto do povo”, ou ele assume um ar
cínico, ironizando o seu próprio trabalho. Este último tipo de bregueiro é
preferível, pois desvenda com a sinceridade da ironia a sua burla.
Em
suma, como levar a sério este “artista” que não se leva a sério?
Agora
eu vou parar de apontar defeitos no brega para dizer ,em conclusão, por que
estou fazendo isso.
Bem,
esta revista deverá ser lida por alunos do Curso de Educação Artística –
Habilitação em Música, que irão trabalhar, entre outras coisas, com o Canto Coral,
e, por conseguinte, terão que selecionar canções para uso em sala de aula.
Infere-se daí que estes alunos precisam discutir “o gosto” e “o valor” das
obras de arte. Com este artigo, eu cumpro apenas o papel de iniciar, portanto,
um debate necessário.
Se
alguém, no próximo número, quiser contribuir para a discussão, até mesmo
defendendo o brega – tarefa bastante difícil – deverá fazê-lo. De minha parte,
desejo-lhe sinceramente boa sorte, pois vai precisar muito dela.
Se
um dia, algum aluno deste curso defender publicamente a ideia de que o brega é
válido porque todo tipo de canção é válido, gostaria que ele nunca esquecesse
de acrescentar à sua exposição que eu defendia posição diferente.
É
o mínimo que ele poderá fazer por mim.
DICIONÁRIO DE APOIO
Venal – aquele que se vende, corrupto, mal
intencionado, etc.
Recatada
- Quieto, tímido,
envergonhado...
Despudorada - Que não tem
pudor, desavergonhada, indecente...
Lascívia
– luxúria, sensualidade exagerada, excitação, Que procura
constantemente e sem pudor satisfações sexuais.
Condescendência - Disposição do espírito que faz
ceder aos sentimentos, aos desejos de alguém.
Burla
– engano,
fraude.