sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O BREGA É BREGA

Wenceslau Alonso O. Junior - 1992
Para começar, como manda o rigor em uma exposição que se preze, vamos delimitar a abrangência deste escrito: ele tratará do brega nas canções de compositores brasileiros.
O brega é quase sempre um bolero bastante piorado, tanto na melodia quanto na letra. Quem disse isso, e eu concordo como conceito preliminar, foi o Edelmiro em uma de nossas aulas sobre o conceito de beleza em São Tomas de Aquino. Não me perguntem como fomos de São Tomas ao brega, que eu não recordo. Sei que fomos, e sei que é possível ir.
Eu sou contra o brega sempre que estou lúcido. Se faço alguma leve concessão a ele em certas circunstancias, não é propriamente no fascínio estético do brega que a explicação da concessão deve ser procurada. Com certeza ela se encontra alhures. Em geral, quando alguém que não coleciona discos de brega aparece dançando o brega com cara de êxtase numa festa qualquer, devemos prestar atenção na parceira do dançarino, pois a razão do êxtase possivelmente será ela.
Eu sou contra o brega por motivos éticos e estéticos. Comecemos pelos motivos estéticos.
O poeta Ezra Pound em seu livro “ABC da literatura” diz, em certo momento, que há seis tipos de artistas (ele fala mais propriamente de escritores). Vejamos os três primeiros:
a)    Os inventores: homens que descobriram um novo processo.
b)    Os mestres: homens que combinaram um certo numero de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores.
c)    Os diluidores: homens que vieram depois das duas primeiras espécies e não foram capazes de realizar bem o trabalho “artístico”.
Se introduzirmos no terceiro tipo algumas mudanças conceituais e produzirmos a seguinte definição: “homens que vieram depois das duas primeiras espécies e realizaram péssima e venalmente o trabalho artístico”, teremos o perfil do compositor de brega.
Eu acabei de dizer que os compositores de brega fazem trabalho artístico, mas até isso é duvidoso, porque a criação é essencial na caracterização da obra de arte, e o que ocorre no brega é uma adaptação de certas sonoridades e palavras dentro de um limite muito estreito, e não propriamente criação.
Do ponto de vista estético, a história do brega entre 1930 e hoje é a história do seu desmascaramento, quer no terreno dos arranjos e das melodias, quer no terreno das letras das canções.
Com o passar dos anos, os arranjos simplificaram-se, sob a influencia das formações dos grupos de rock, houve uma economia de instrumentação, e os violinos cederam lugar às guitarras, o que retirou do brega o álibi da solenidade e deu-lhe a possibilidade da estridência  vulgar. Em outras palavras, o abandono dos arranjos com a orquestra de sopros e cordas pôs a nu com mais clareza a penúria estética das melodias.
Para compreender o que aconteceu com as letras das canções, leia-se “criação” de Vicente Celestino, intitulada “Coração Materno”, regravada ironicamente por Caetano Veloso em 1968, no disco “Tropicália”.
“Disse um campônio á sua amada,
Minha idolatrada peça o que quiser.
Por ti vou matar, vou roubar,
Embora tristeza me causes, mulher.”

Leia-se mais este trecho de Leandro e Leonardo:

“Entre tapas e beijos
É ódio é desejo,
Paixão ou ternura.
Um casal que se ama
Até mesmo na cama
Provoca loucura.”

E ainda este de Lindomar Castilho, compositor brega que se transferiu da ficção para a realidade, matando bregamente a própria esposa por julgar-se traído:

“Eu hoje quebro esta mesa,
Se o meu amor não chegar,
Também não pago a despesa,
Nem saio deste lugar”.

No termo especifico das letras, como é possível notar nos três pequenos exemplos anteriores, a dicção parnasiana de Vicente celestino – que usa a ordem frasal indireta (hipérbato), o vocativo (apóstrofe): -“Embora tristeza me causes (ó) mulher” e vocábulos de procedência culta: “campônio”, “idólatra”- foi abandonada, e o álibi da pomposidade cedeu lugar a uma linguagem mais cotidiana. É importante notar que este fato também ocorreu na grande poesia, basta comparar a dicção de Olavo Bilac com a de Manuel Bandeira para perceber o fenômeno. Porém, no caso da grande poesia, a mudança processou-se por causa de uma preocupação vanguardista esteticamente defensável, enquanto que, no brega, a mudança fundamenta-se em uma intenção de caráter venal, pois pretende-se aí aproximar mais as letras do real universo do consumidor, um universo intelectualmente pobre, produzido deliberadamente pelos meios de comunicação de massa, no sentido de mantê-lo (o consumidor) afastado das produções musicais mais criticas e instigadoras.
Mesmo na temática que, ao longo da historia do brega se resume às dores de cotovelo, sofrimentos de cornos (mansos e sanguinários) e desilusões amorosas de toda espécie, a mudança de uma abordagem mais recatada para uma mais despudorada, não significa avanço na discussão dos hábitos morais. O tom despudorado das letras de hoje é ainda índice de venalidade. A lascívia das letras parece funcionar como um estimulante da sexualidade, que é uma forma de lazer muito estimada nas camadas populares, por ser barato, já que depende apenas do uso do corpo. Enfim, letras picantes vendem mais.
Como se vê, de Vicente Celestino para cá o lugar desmascarou-se, percorrendo uma trajetória que desemboca no acanalhamento e no cinismo das produções atuais.
Dizer o lugar desonroso que o brega ocupa na hierarquia do trabalho artístico, não o explica suficientemente, entretanto.
A distância que existe entre Chico Buarque de Holanda (um mestre), ou Schoenberg (um inventor) e, queiram desculpar, Carlos Santos ou Alípio Martins (diluidores de 5ª categoria), não se mede apenas esteticamente, mas também eticamente.
Vamos ao ético.  
Dizem que o brega é cultura, e é. De acordo com o conceito antropológico, cultura é tudo aquilo que o homem produz. Então, o brega é cultura.
Entretanto, o conceito antropológico não o legitima humanisticamente, pois há cultura e há cultura.
Existe a cultura popular (o folclore), digna e representativa do modo de ser de certos grupos das camadas populares.
Há a cultura de vanguarda (onde estão os inventores). Há a cultura erudita (onde estão os mestres e as pessoas que têm acesso ao conhecimento acadêmico) e há, desculpem novamente, a cultura de massa (aquela produzida e orquestrada pelos meios de comunicação de massa, basicamente rádio e televisão, onde está o brega).
Ora, a cultura de massa, como já demonstrou a escola sociológica de Frankfurt – hoje, sintomaticamente fora de moda – cumpre um papel ideológico, isto é, impede as camadas populares de ter acesso ao conhecimento das verdadeiras causas produtoras das injustiças sociais.
Enquanto nos preocupamos com as desventuras amorosas de Chitãozinho e Xororó e delas sorrimos com condescendência, ou até com elas nos comovemos, a estrutura injusta da sociedade permanece pouco ou nada discutida e sem chances de ser alterada. Não é a toa que a Rede Globo está investindo tão fortemente no brega.
Além do aspecto ideológico, o brega ainda merece outro reparo ético: ele é feito descaradamente para vender.
O compositor de brega não é um artista no sentido estético. Ele é um comerciante desonesto de quinta categoria, pois vende um produto que sabe que é ruim. Um produto que ele próprio acanalha, numa atitude de desrespeito ao público que ingenuamente o prestigia.
O lema deste tipo de compositor é: “quanto mais pior, mais melhor”, isto é, quanto mais esteticamente ruim for a canção, melhor será para vendê-la.
Vocês certamente já viram um compositor de brega falar sobre o seu trabalho: ou ele assume um ar populista, defendendo “o gosto do povo”, ou ele assume um ar cínico, ironizando o seu próprio trabalho. Este último tipo de bregueiro é preferível, pois desvenda com a sinceridade da ironia a sua burla.
Em suma, como levar a sério este “artista” que não se leva a sério?
Agora eu vou parar de apontar defeitos no brega para dizer ,em conclusão, por que estou fazendo isso.
Bem, esta revista deverá ser lida por alunos do Curso de Educação Artística – Habilitação em Música, que irão trabalhar, entre outras coisas, com o Canto Coral, e, por conseguinte, terão que selecionar canções para uso em sala de aula. Infere-se daí que estes alunos precisam discutir “o gosto” e “o valor” das obras de arte. Com este artigo, eu cumpro apenas o papel de iniciar, portanto, um debate necessário.
Se alguém, no próximo número, quiser contribuir para a discussão, até mesmo defendendo o brega – tarefa bastante difícil – deverá fazê-lo. De minha parte, desejo-lhe sinceramente boa sorte, pois vai precisar muito dela.
Se um dia, algum aluno deste curso defender publicamente a ideia de que o brega é válido porque todo tipo de canção é válido, gostaria que ele nunca esquecesse de acrescentar à sua exposição que eu defendia posição diferente.
É o mínimo que ele poderá fazer por mim.

DICIONÁRIO DE APOIO

Venal aquele que se vende, corrupto, mal intencionado, etc.
Recatada - Quieto, tímido, envergonhado...
Despudorada - Que não tem pudor, desavergonhada, indecente...
Lascívialuxúria, sensualidade exagerada, excitação, Que procura constantemente e sem pudor satisfações sexuais.
Condescendência - Disposição do espírito que faz ceder aos sentimentos, aos desejos de alguém.
Burla – engano, fraude.